Com o advento da Constituição Cidadã, promulgada em 05 de outubro de 1988, a Procuratura Pública, antes una, passou a ser exercida por três órgãos distintos.1
No Título IV — “Da Organização dos Poderes” —, ao lado do Poder Legislativo (Capítulo I, art. 44 a 75), do Poder Executivo (Capítulo II, art. 76 a 91) e do Poder Judiciário (Capítulo III, art. 92 a 124), aparecem as chamadas “Funções Essenciais à Justiça” (Capítulo IV, art. 127 a 135), que passaram a ser atribuídas a três procuraturas constitucionais independentes, quais sejam, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia de Estado.2
Ao Ministério Público coube a advocacia dos interesses difusos e indisponíveis da sociedade; à Defensoria Pública, a defesa dos hipossuficientes; à Advocacia de Estado, a defesa dos interesses públicos constitucionais cometidos à Administração do Estado dentro de seu âmbito funcional e federativo.3
A partir da leitura da Constituição da República é possível observar que a procuratura da Advocacia de Estado é exercida por bacharéis em Direito, inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, aprovados em concurso público de provas ou de provas e títulos, integrantes de carreira específica que tem como atribuições a consultoria, a assessoria e a representação judicial e extrajudicial do ente estatal, seja da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios (esses ainda doutrinária e jurisprudencialmente) e de suas autarquias e fundações de direito público.4
Segundo lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “as atividades desenvolvidas pelos Advogados de Estado se situam inequivocamente no plano das atividades-fim, ou seja: são ações voltadas ao estabelecimento, à manutenção, ao cumprimento e ao aperfeiçoamento da ordem jurídica e, apenas secundariamente, referidas ao aparelhamento do Estado.”5
Basicamente, as tarefas da Advocacia de Estado são o controle interno de juridicidade, através das atividades de consultoria e assessoria, e a defesa em juízo, através da atividade contenciosa.
A atividade de consultoria jurídica, privativa dos membros da Advocacia de Estado, é considerada pela maioria dos estudiosos sobre o tema a mais importante de todas elas. Referida função, exercida de ofício ou mediante provocação, traduz-se em atividade fiscalizatória voltada ao controle jurídico interno, cabendo ao advogado, sempre que possível, diante dos fatos apresentados, indicar ao gestor público alternativas juridicamente aceitáveis para a viabilização da execução de políticas públicas. Sendo atividade preventiva, atende ao Princípio da Eficiência, pois aumenta a segurança jurídica, legitima cada vez mais o ente público como cumpridor de seus deveres e, por consequência, reduz a litigiosidade.6
Luciane Moessa de Souza, com maestria, distingue as atividades de consultoria jurídica e de assessoramento:
“Função pouco lembrada, até porque desempenhada por número muito menor de integrantes dos quadros públicos, normalmente exercentes de cargos em comissão, é o assessoramento jurídico, que se assemelha, por um lado, à consultoria jurídica, por envolver a aplicação espontânea de normas jurídicas por parte do Poder Público, de modo a evitar futuros questionamentos quanto à licitude de seus comportamentos, bem como a elaboração de projetos de lei e normas regulamentares. Por outro lado, distingue-se da consultoria por envolver uma orientação voltada não à realização dos valores permanentes do Estado, pré-definidos pela ordem jurídica (razão pela qual a consultoria, via de regra, deve ser vinculante), mas sim direcionada à realização de objetivos transitórios, de governo, em que a ordem jurídica revela-se apenas como limite e não como objetivo norteador, razão pela qual o assessoramento, em regra, não é vinculante.”7
Nesse mesmo sentido é a lição de Ricardo Vieira de Carvalho Fernandes:
“Nas palavras de Cláudio Grande Júnior (2009, p.83), a assessoria jurídica é ‘função ancilar e de apoio, exercida com menor autonomia e em benefício do Estado, para operacionalizar, conforme o ordenamento jurídico, uma decisão política.’
Nessa atividade, o Procurador atua como auxiliar jurídico do administrador público para a tomada de decisões políticas que tenham algum reflexo jurídico.”8
E, mais à frente, continua:
“É considerada uma atividade concomitante, uma vez que ocorre no mesmo momento da atuação estatal e anteriormente à judicialização da questão, prevenindo a ocorrência de lesões à ordem jurídica, bem como solucionando problemas orgânicos que gerariam gastos futuros ao Erário. Nesse ponto, se assemelha bastante à consultoria.
O assessoramento tem muita relevância no controle de juridicidade da ação estatal por permitir um controle da atividade administrativa no mesmo momento das decisões políticas que a determinam. Em suma, o Advogado Público atua ao lado do administrador, opinando sobre a concordância das políticas públicas com o sistema jurídico.”9
Noutras palavras, tanto consultoria como assessoria são atividades preventivas relacionadas ao controle de juridicidade. A diferença básica reside no fato de que a primeira é voltada à administração (atividade neutra), enquanto a segunda é dirigida ao governo (atividade política), sendo que ambas devem obediência ao Princípio da Legalidade.10
Desde que bem desenvolvidas, as atividades de consultoria e assessoria jurídicas, por serem proativas, resultam no aumento da segurança jurídica e da legitimidade para o ente público cumpridor de seus deveres, além de propiciarem ganho social decorrente de uma maior previsibilidade jurídica da conduta dos entes estatais, reduzindo o número de feitos na atividade contenciosa e criando, assim, um verdadeiro círculo virtuoso.11
No âmbito da Advocacia de Estado, a necessidade de atividade contenciosa pode surgir quando o Direito não é cumprido de forma espontânea, em hipóteses de descumprimento de deveres pelo administrado ou na defesa do ente público em situações em que, mesmo cumprindo o seu papel, seja levado a juízo sem qualquer fundamento.
Ressalte-se aqui, novamente, a importância de uma consultoria jurídica eficiente, que, orientadora do Poder Público sob o ponto de vista jurídico, aumenta a confiabilidade nas instituições oficiais, contribui para ampliar a segurança jurídica e promover o desenvolvimento institucional, evitando situações de cometimento de ilícito que poderiam resultar em ações administrativas e judiciais, sempre lembrando que “os custos de uma condenação são sempre superiores aos do cumprimento espontâneo das normas jurídicas.”12
Mesmo diante de uma consultoria jurídica eficiente, é possível que, por alguma razão, determinado interesse legítimo do administrado seja atingido. Em tais situações, o Advogado Público, cuja função é essencial à justiça, deverá estar atento à realização das atividades-fim do Estado, ou seja, ao estabelecimento, à manutenção e ao aperfeiçoamento da ordem jurídica, agindo conforme a lição de Luciane Moessa de Souza:
“Assim, a nosso ver, parece evidente que, ao se constatar em um litígio judicial, à luz das provas já produzidas e da legislação pertinente, que o pleito deduzido pelo administrado merece acolhimento, além de existir o dever de reconhecimento do pedido, acompanhado da satisfação imediata do direito, deve o advogado público tomar diversas outras providências: (a) verificar se existem outras situações pretéritas semelhantes, levadas ou não a juízo, orientando de ofício a Administração Pública a fazer cessar a violação do direito dos administrados; (b) verificar se a conduta ativa ou omissiva do Poder Público que levou à violação pretérita já foi devidamente corrigida, de molde a evitar novos ilícitos futuros; (c) caso ainda não tenha sido corrigida, proferir, de ofício, orientação jurídica para que o seja.”13
Mesmo na atividade contenciosa, o Advogado de Estado deve ter em mira a realização do interesse público primário e atender ao interesse público secundário que se encontre em consonância com aquele.
Sendo assim, deverá realizar o melhor contencioso possível, sendo defeso ao Advogado de Estado litigar de má-fé, por mero interesse arrecadatório, com finalidade emulatória ou de forma protelatória, bem como recorrer de modo sistemático contra jurisprudência pacificada ou propor ações inúteis que ferem o Princípio da Eficiência e critérios de economicidade.
Para corresponder à confiança legítima do administrado no Poder Público, o Advogado de Estado deve sempre agir de forma ética, conforme sua ciência e consciência.14 Para tanto, a Constituição da República e o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, atentos à essencialidade das funções do advogado, asseguram-lhe autonomia funcional, ou seja, independência hierárquica do ponto de vista técnico.
Nesse sentido é a redação do art. 6° da Lei n° 8.906, de 04 de julho de 1994:
Art. 6° Não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos.
Parágrafo único. As autoridades, os servidores públicos e os serventuários da justiça devem dispensar ao advogado, no exercício da profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas a seu desempenho.
Sendo assim, no âmbito da Administração Pública, não há hierarquia nem subordinação entre Advogados de Estado, que gozam de independência técnico-funcional. No máximo, poderá ser admitida certa hierarquia relacionada a questões de ordem administrativa. Neste sentido é a lição de Alexandre Magno Fernandes Moreira Aguiar:
“Ressalte-se que o advogado público deve obedecer à hierarquia da entidade em que atua, mas apenas em questões puramente administrativas, como escala de férias, distribuição de processos e fixação de horários. Essa hierarquia desaparece quando se trata do conteúdo das manifestações do advogado público, que tem a liberdade de expressão garantida como qualquer advogado.”15
Grave é o desrespeito a essa independência funcional, e pode configurar abuso de poder. Essa é a lição do festejado mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
“A violação dessa independência funcional se se der no plano hierárquico, a pretexto da imposição da vontade atentatória à consciência do Advogado de Estado, poderá caracterizar abuso de poder, mesmo se perpetrado no contexto interno da hierarquia do órgão coletivo de criação infraconstitucional (Procuradorias), uma vez que o Advogado de Estado, desde logo por seu uma advogado, por definição constitucional, é um órgão unipessoal.”16
Diante de aspectos tão peculiares, a Advocacia de Estado possui regime jurídico especial oriundo da combinação de três aspectos, quais sejam, as normas voltadas ao advogado em geral, as dirigidas ao Advogado de Estado e aquelas direcionadas ao servidor público.
Conforme lição de Ricardo Vieira de Carvalho Fernandes, dessa combinação de fatores surge um conjunto de princípios que dão conformação a essa função essencial, sendo eles: a) essencialidade; b) institucionalização ou institucionalidade; c) isonomia, subdividido em isonomia de tratamento às instituições e isonomia de garantias dos membros; d) concurso público; e) simetria, f) unicidade institucional ou unidade; g) organicidade unipessoal; h) independência funcional; i) inviolabilidade; j) autonomia administrativa; k) autonomia de impulso; l) dispensa recursal por ato composto e m) proteção à legalidade.17
Referido autor também destaca que, ao lado de garantias genéricas atribuídas aos advogados em geral e a todo agente público, o Advogado de Estado, em decorrência da essencialidade de seu mister, tem asseguradas algumas garantias específicas, sendo elas: estabilidade, movibilidade motivada (alguns autores falam em inamovibilidade), irredutibilidade de subsídio, organização funcional em carreira e com quadros próprios, independência profissional (funcional) e inviolabilidade.
Passados cerca de vinte e cinco anos da promulgação da Constituição Cidadã, os poderes públicos responsáveis pelas funções estatais (legislativa, executiva e judiciária), além da Ordem dos Advogados do Brasil atuando na defesa de suas missões institucionais (art. 44, I e II, da Lei nº 8.906/94), sensíveis ao atual estágio de maturação de nossa sociedade, têm conferido grande destaque à Procuratura da Advocacia de Estado.
A OAB18 tem manifestado ao Supremo Tribunal Federal a necessidade de priorização da votação da Proposta de Súmula Vinculante número 18, que tem o seguinte teor:
"O exercício das funções da Advocacia Pública, na União, nos Estados e nos Municípios, nestes onde houver, constitui atividade exclusiva dos advogados públicos efetivos, a teor dos artigos 131 e 132 da Constituição Federal de 1988."19
O Congresso Nacional, atento à essencialidade da Advocacia de Estado, ciente de que vivemos em um Estado que além de Democrático é de Direito, no uso do poder constituinte reformador, está em franca produção legislativa, aperfeiçoando a Constituição da República e reafirmando garantias até então defendidas doutrinariamente. Assim sendo, tramitam hoje nas casas legislativas as seguintes propostas de emenda à Constituição da República: PEC 153/2003 (Câmara dos Deputados), PEC 17/2012 (Senado Federal), PEC 39/2012 (Senado Federal).
O Poder Executivo, em consonância com tais valores, também tem enviado às casas legislativas propostas de inciativa de seus chefes, organizando a Advocacia de Estado de cada ente federativo, merecendo destaque a atuação vanguardista dos poderes municipais em Porto Alegre/RS, com a edição da Lei Complementar nº 701/2012, que institui a Lei Orgânica da Advocacia Pública, unindo sob a Procuradoria-Geral as carreiras das atividades jurídicas exercidas no âmbito das administrações direta, autárquica e fundacional.
Ordem e Progresso!
Referências
1 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 24.
2 Ibidem, p. 25.
3 Ibidem, p. 26.
4 Ibidem, p. 51.
5 Ibidem, p. 41
6 SOUZA, Luciane Moessa de. Consultoria jurídica no exercício da advocacia pública: a prevenção como melhor instrumento para a concretização dos objetivos do Estado brasileiro. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 179.
7 SOUZA, Luciane Moessa de. Autonomia institucional da advocacia pública e funcional de seus membros: instrumentos necessários para a concretização do Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 90.
8 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Regime jurídico da advocacia pública. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 146.
9 Idem.
10 CARPES, Marcus Ronald. Advocacia da União e Estado de Justiça. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 208.
11 SOUZA, Luciane Moessa de. Consultoria jurídica no exercício da advocacia pública: a prevenção como melhor instrumento para a concretização dos objetivos do Estado brasileiro. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 179.
12 SOUZA, Luciane Moessa de. Autonomia institucional da advocacia pública e funcional de seus membros: instrumentos necessários para a concretização do Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 89.
13 SOUZA, Luciane Moessa de. Consultoria jurídica no exercício da advocacia pública: a prevenção como melhor instrumento para a concretização dos objetivos do Estado brasileiro. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 182.
14 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 41.
15 AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Para que serve o advogado público? In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 57.
16 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Op. cit., p. 45.
17 FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Regime jurídico da advocacia pública. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 53-59.
18 Em: <http://www.oab.org.br/noticia/25134/advocacia-publica-oab-quer-prioridade-na-criacao-de-sumula-vinculante>. Acesso em: 10 abr. 2013.
19 Em: < http://anpm.com.br/site/?go=carreira&id=6&title=proposta_de_sumula_vinculante_n__18>. Acesso em: 10 abr. 2013.
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